Discurso de posse de David Massena


Boa noite, senhoras e senhores.

Boa noite, Presidente Tereza Malcher Campitelli, cumprimentando-a faço a minha saudação a todas as autoridades presentes.

Foi uma longa viagem até chegar aqui. Como disse Nélida Pinõn:  “os percalços de qualquer trajetória humana fazem parte de um enredo eminentemente secreto. De uma experiência pronta a desfazer-se, ou a naufragar no anonimato ― sem a luminosa proteção da fina  tessitura da arte.”

Negligenciei muitas vezes. Não dei importância à folha branca que provocava meu imaginário. Não a rabisquei com as vozes que clamavam por abrigo na produção textual. Mas o tempo não me perdoou - com a serenidade de um peixe, foi seduzindo-me até a escravidão do escritor que não se reconhece sem o auxílio das palavras.  

Ainda garoto, disse à minha mãe que, se pudesse, seria escritor. No que prontamente ouvi:“os livros não desfrutam a importância que merecem. Procure um caminho menos desarrazoado.”

Bem, a pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, do Instituto Pró-Livro, destaca que mais da metade da população brasileira se considera leitora, mas 30%  nunca comprou um livro.

Penso, então, ao ler esses dados: sensata minha mãe. Contudo, não dei ouvidos à sua fala, e desarrazoado ou não, lunático ou não, segui pelo caminho das palavras, das letras, da escrita, sonhando minhas personagens, dando-lhes vida e brincando de ser Deus ao criar territórios, histórias, conflitos, soluções, uma busca por tocar corações através das realidades possíveis da arte.

É isto: escrevo para tocar as pessoas, se possível, afeitá-las, para tentar, nem sempre com triunfo, amenizar suas dores, colorir o mundo, despertar emoções. Num país em que a renda do 1% mais rico é 36 vezes a média da metade mais pobre, num país em que o trabalho infantil atinge 1,8 milhão de crianças e adolescentes, das quais cerca de 998 mil encontram-se em situação irregular, creio que escrever seja mesmo uma forma de mudar o mundo,de transformar vidas, tocando o imo de suas almas.

Em dias tão sombrios, ainda assistimos à tragédia se transformar em armas contra nós mesmos. Percebemos o humor, a farsa e o deboche desqualificarem a execução de seres que clamam pelo fim das injustiças sociais, num julgamento antecipado que se aproxima feito um alvejão cada vez mais fronteiriço das nossas vidas, apontando-nos como vítimas subsequentes. Que Marielles, Andersons, Zuzus, Dorothys, Chicos Mendes, Olgas, e tantos mais, não nos sirvam apenas como inspiração de personagens, mas que suscitem histórias a nos fazer refletir sobre a importância da vida, esse mistério indecifrável: por vezes, rocha; outras tantas, líquida. Tão grito e tão sopro.

A verdade é que há muitos anos iniciei a minha viagem literária solitária, numerosas vezes à deriva, até que pudesse aportar nesta tribuna adentrando a Casa de Salusse. Um pacto com as palavras que me honra e me distingue pela alegria.

Porém penso que uma posse acadêmica não deveria afetar o ego de ninguém. Perdoem-me se consigno com tanto ímpeto essas palavras. Creio, sim, que deveria fazer-nos questionar sobre os caminhos que nos levaram a conquistar esse reconhecimento. Os caminhos, sim, são dignos do meu orgulho: foi através dos textos, do trabalho literário, da carpintaria das palavras, da costura entre elas, que muitos foram tocados. Por isso estamos aqui. Condecorações são apenas consequências.

Honra-me, sobretudo, preencher a cadeira de número 36 da Academia Friburguense de Letras, cujo Patrono é Raul de Leone, poeta e diplomata petropolitano, de cuja obra destaquei o Soneto Decadência:

Afinal, é o costume de viver
Que nos faz ir vivendo para a frente.
Nenhuma outra intenção, mas, simplesmente
O hábito melancólico de ser...

Vai-se vivendo... é o vício de viver...
E se esse vício dá qualquer prazer à gente,
Como todo prazer vicioso é triste e doente,
Porque o Vício é a doença do Prazer...

Vai-se vivendo... vive-se demais,
E um dia chega em que tudo que somos
É apenas a saudade do que fomos...

Vai-se vivendo... e muitas vezes nem sentimos
Que somos sombras, que já não somos mais nada
Do que os sobreviventes de nós mesmos!...

Mais do que celebrar, para mim é hora de agradecer. Dedico esta noite, com emoção, ao meu amigo Victor Heringer, jovem escritor que nos deixou recentemente, fazendo seu último voo rumo ao infinito. Ele sabia, como poucos, do poder das palavras como alicerce na construção de um mundo que valha os nossos sonhos.

Agradeço aos mestres facilitadores, Zelma Mussi,  Ledir Porto, Robério Canto, Cícero Schott Monerat, Sônia Miranda e Ingrid Zavarezzi, pelos caminhos, atalhos, longas estradas, difíceis acessos para a compreensão da dissimilitude do que é escrever e do que é literar.

À minha amiga de todos os dias, Déborah Simões, pelas descobertas, pelas parcerias de questionamentos, confidências e reflexões literárias. Você me mostrou um mundo sem dicionários, onde as palavras podem dizer muito além dos seus significados formais e humanos. 

Aos amigos, incentivadores e apoiadores Rivana Abbud e Rogério Faria.

À minha mulher, Cláudia Badaró Massena, por me permitir ser quem sou e estar aqui. Teria naufragado, com certeza, sem a sua existência. Aos meus filhos, Isadora e Caio, doces inspirações, fortes presenças, pelos ensinamentos diários, por corroborarem que a literatura é a mais sintética das artes.

Não é hoje que me descubro escritor. E errei ao me apontar assim tão garoto também. Para mim, autor e leitor nascem juntos. Por isso, não posso deixar de agradecer aos meus leitores e à indescritível sensação de encontrar meus livros em sebos, ao lado de tantos grandes nomes que buscam novos olhares e manejos.

Agradeço à vida. Agradeço a Deus!

A todos vocês, muito obrigado!
 
David Massena Gracioli
Cadeira nº 36 - Patronímica: Raul de Leone.

Comentários